Cr 002 - De Dentro do Buraco

Nossa Iguape tem sua zona urbana numa região plana, facilitando-nos uma oportunidade excelente de transporte: a bicicleta. Um dos prazeres que tenho aqui é ir de bicicleta a qualquer lugar. Vou às compras, ao passeio, ao banco, enfim a todos os lugares pedalando. Os mais aficionados por esporte nos ilustram o quanto é saudável este hábito, comentando sobre condicionamento físico ou algo parecido. Ecologistas mais atentos podem até citar: é o veículo de menor impacto sobre o meio ambiente; seria talvez o mais ecologicamente correto.

Há cerca de cinco anos, minha filha contava então com dois anos e meio. Usávamos na ocasião uma cadeirinha, presa ao guidão, para levá-la conosco. Vínhamos da passarela, pela Avenida Eduardo E. Pereira (Beira do Valo) e a cem metros do final da Avenida Ana Cândida S. Trigo. Passamos por buracos e a bicicleta balançou. 

Seus pés escaparam do suporte da cadeirinha e o dedão do pé prendeu-se entre o garfo e a roda. Acidentes acontecem... Fomos ao pronto socorro. Após uma sutura e algumas semanas, restou ao dedo uma cicatriz, hoje quase imperceptível. Curiosamente, esses buracos ainda existem.

Quem usa de carro em nossa cidade merece descontos em oficinas mecânicas, em razão da assiduidade com que consertam a suspensão. Um espetáculo à parte é observar os ônibus que passam pela Ana Cândida. A cada dia os pulos aumentam – e o barulho de molas e amortecedores tentando em vão funcionar. Isolemos o barulho e observemos apenas o movimento. 

Se abaixarmos, para vermos aos ônibus de baixo para cima e sem fixar o olhar no solo, parecem-nos que navegam em ondas bravias! Uma linda embarcação singrando pela avenida... Espero que os passageiros não fiquem mareados.

Adoro o mosaico formado pelas lajotas. Observo neles quase um quadro, feito por hábeis mãos calejadas; quem as aplica talvez nem perceba a sutileza dos desenhos que formam. Iniciando o calçamento, formam uma tela revirando a areia fofa; nessa tela será montado um belo quadro. Não há a presença de motoniveladoras barulhentas. 

A eficiência do nivelamento por máquina talvez não compense o barulho que produzem. Assim, temos a possibilidade de um belo trabalho artesanal. Após algum tempo, quando o solo então cedeu, vejo que o mosaico já está totalmente formado! A paisagem é completa. 

Ao traçado cubista juntaram-se vales, montanhas, cânyons... Depois de uma chuva, temos lagos... E sem muita imaginação, oceanos imaginários separando dois continentes: os lados de nossas ruas!

Temos buracos com estilos requintados – e alguns até com sobrenome – nos ensinando alguns conceitos úteis. 

O Fim do Mundo: o desmoronamento de precárias galerias ou bueiros, levando adentro areia e calçamento; tudo vai sumindo, morrendo... 

Testemunho Fiel: nos mostram que houve uma escavação – se traçarmos uma linha reta, eles a seguem por mais de duzentos metros. 

Sonhos Valem a Pena: após uma chuva qualquer, as enormes poças servem de lagoas para as crianças brincarem com barquinhos de papel, imaginando “um dia ainda vou ter meu barco...”. 

Solidariedade: próximos a esquinas e na ausência da sinalização de trânsito, servem-nos tal como uma placa “pare”, evitando acidentes em esquinas movimentadas.

Cidadão Participativo: independentemente de qual seja o partido na administração, existem há quase uma década, sempre presentes.

Ecológicos: surgem no meio da rua, como um sumidouro, logo ganhando alguns galhos em centro, para alertar aos desavisados.

Estatísticos: identificados pela administração, ganham por vários dias placas em cavaletes: “Trânsito Interditado”. 

Culturais: próximos a concha acústica, lá estão aproveitando para assistir apresentações, mesmo escassas. Esses gozam de privilégios, acompanhando de perto jogos de futebol e os últimos suspiros de ruínas históricas.

Meus preferidos são os Buracos Fantasmas ou Vote em Mim: eles apareceram na Avenida Aeroporto. Quando o Governador aqui esteve – dentre outras coisas também para inaugurar o próprio asfalto da Avenida – sumiram na véspera de sua chegada. Alguns dizem que reaparecem do nada, da noite para o dia!

Cavidades filosóficas... Temos até um ditado popular ensinando: “Só sai de um buraco quem quer. Se der à mão a quem não quer sair, ele o puxará para dentro!”.

Iguape, julho de 2003